segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

2. O Brasil Colonial, vol 1.


Título: Coleção O Brasil Colonial, vol 1.
Organizadores: João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa.
Civilização Brasileira, 2014. 586 pp.
Lido entre 11 e 14/1/2015.

Comentários: Composto por ensaios de alguns dos mais importantes historiadores contemporâneos, o livro é um importante "prestar de contas" da situação da pesquisa histórica sobre as primeiras décadas do Brasil. É interessante para o leigo ter conhecimento de que muitos dos aspectos consagrados da historiografia nacional hoje são fortemente contestados pela pesquisa contemporânea. O tema talvez que mais perpassa todo o livro é sobre o status administrativo do Brasil-colônia e a tese antiga de Caio Prado Jr. é posta a prova, sobretudo no artigo de Antônio Manuel Hespanha e José Manuel Subtil, os autores, longe de verem um sistema de dominação hierárquica no Antigo Regime Português, vêem a monarquia do período como uma monarquia onde o rei não exercia exatamente um poder absoluto, mas reinava uma República (era esse o nome dado à época) em que havia uma existência múltipla de poderes e direitos, quase sempre ligados à classe social e à função econômica do grupo. Na expressão consagrada: monarquia corporativa polissinodal, mostrando o que poder era compartilhado pelas diversas corporações e funcionava em consultas a cada um desses elementos.
            O livro também busca dar destaque a outros grupos sociais menos favorecidos pela historiografia tradicional, com importantes capítulos a respeito dos índios e sobretudo dos negros. As informações dadas a respeito do tráfico negreiro são muito relevantes e, pelo menos para mim, bem pouco conhecidas. Em resumo, o tráfico negreiro colonial, ainda que baseado em práticas antigas e centenárias presentes na África transmutou completamente a dinâmica social dessas sociedades, direcionando-as completamente para essa atividade comercial. O efeito no continente foi devastador.
             Marca-se aqui a intensa trama de relações entre europeus e indígenas, entre povos europeus (sobretudo franceses e portugueses) e de todos com os negros adventícios. Há muitas informações interessantes, sobretudo sobre as atividades dos jesuítas no país e a contínua adaptação do indígena à vida na colônia, marcada por períodos de violência, mas também por uma crescente assimilação – ainda que nem sempre totalmente unívoca, como o curioso fenômeno da santidade que é descrito no livro.

            Há muitas qualidades no livro, mas há também problemas importantes nessa série. O primeiro é que a busca por novos caminhos historiográficos de certa forma eclipsou a corrente histórica geral. Infelizmente esse volume não deve ser visto como um substituto do primeiro volume da História Geral da Civilização Brasileira, organizado por Sérgio Buarque de Holanda, uma vez que praticamente todos os grandes eventos históricos do nosso primeiro século – como o descobrimento, a constituição das capitanias hereditárias e a guerra dos tamoios no Rio de Janeiro, ou nem sequer são mencionados ou são tratados de maneira muito tópica, certamente um fruto do enfoque pós-moderno e não totalizante da atualidade. Embora o livro traga muitas informações relevantes, a seu fim resta uma estranha sensação de incompletude.

1 - Sobrados e Mucambos


Título: Sobrados e Mucambos
Autor: Gilberto Freyre
Intérpretes do Brasil vol 2, pp. 729-1464. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000.
Lido entre 31/12/2014 e 16/01/2015.

Comentários: Continuação do primeiro livro do autor, Casa Grande e Senzala, este volume trata em primeiro lugar da urbanização do sistema patriarcal brasileiro, um fenômeno que ocorreu em seus estágios mais importantes no século compreendido entre 1750-1850. Esse período marca, segundo o autor, uma importante virada na sociedade brasileira, pelo fato de que o sistema de valores originais do patriarcado, que foi visto no volume anterior, se transmuta de um sistema rural, onde o senhor era uma espécie de “senhor feudal” absoluto para o meio urbano, inserindo-se em um meio urbano com uma dinâmica social diferente.
Um tema importante do livro são as mudanças ideológicas causadas por essa transformação social. O autor marca uma progressiva viragem ocidental da vida brasileira, de uma sociedade praticamente “virgem” de influências europeias extra-ibéricas e muito marcada por diversas influências indígenas, africanas, mouras e asiáticas, passa a uma sociedade fortemente europeizada. Isso ocorre em praticamente todos os aspectos da sociedade, da culinária às artes decorativas e ao vestuário; mas aquele ambiente que o autor mais destaca, dando inclusive nome ao livro, é a arquitetura senhorial. O brasileiro de alta classe deixa de habitar a casa-grande rural, com sua arquitetura adaptada ao ambiente tropical, para viver muitas vezes em uma casa de modelo arquitetônico europeu – mormente francês – e muitas vezes insalubre.
O autor marca também outras mudanças ocorridas no período que são correlatas e também estimulam essa transformação da sociedade. Um tema importante é o surgimento do mercado capitalista global, no crescimento da industrialização europeia, e a maneira com que sobretudo o Reino Unido e a França se introduzem no nosso mercado – modificando diversos aspectos da nossa sociedade, em alguns pontos negativamente, mas também positivamente em outros. Essa influência comercial apoia e é reforçada pela influência cultural que a cultura desses dois países exercem sobre o nosso país.
Por fim, o autor narra vários processos que dão início à desintegração do sistema patriarcal brasileiro e elas são contadas sobretudo nos dois últimos capítulos do livro. O primeiro é a ascensão da máquina que, de início em conflito com a mão de obra escrava, vai paulatinamente eclipsando e termina por torná-la obsoleta. Por consequência, o domínio sócio-racial e a formação de uma ampla unidade familiar entre senhores escravo, que o autor vê como marca essencial do sistema brasileiro, vai pouco a pouco sendo substituído por outras maneiras de organização social.
Uma segunda mudança social que marca o fim do período histórico relatado no livro é a ascensão do bacharel na sociedade brasileira. De início criada fora do território nacional, sobretudo em Coimbra, e ao longo do século XIX focada nas duas grandes faculdades de direito, em São Paulo e Olinda, e de medicina, no Rio de Janeiro e em Salvador, a formação superior no Brasil se solidifica na primeira metade do século XIX, processo que autor vê como desencadeando uma sapa no sistema patriarcal brasileiro por introduzir novas autoridades superpostas às do senhor, sobretudo de caráter intelectual. O autor mostra, de maneira convincente, como esse bacharel toma conta da administração imperial sobretudo a partir do segundo reinado. Além disso, frequentemente esse bacharel é mulato, filho ilegítimo do senhor, e sua ascensão também confunde a hierarquia racial brasileira. É importante ressaltar, contudo, que esses são apenas os primeiros passos da desintegração do sistema patriarcal, que vai ganhar momento no século seguinte e é o assunto do terceiro livro Ordem e Progresso.

O livro é um excelente exemplo de ensaio histórico e suas qualidades literárias são bem conhecidas de todos. Na minha opinião ele se equipara, quando não ultrapassa o livro anterior, que lhe é muito mais famoso. A pesquisa, como livro anterior, é extremamente minuciosa, o autor se refere continuamente a viagens de campo por regiões como o Vale do Paraíba, a região das Minas,  e, claro, o seu Pernambuco natal – e isso marca uma diferença em relação ao livro anterior onde há pouca informação de primeira mão. As fontes literárias são copiosas, constituídas principalmente por romances e relatos de viagem, e predominam informações sobre a sociedade da época tiradas de jornais contemporâneos. No entanto, como todo livro do autor, torna-se necessário fazer uma detida análise das afirmações que o autor faz. Isso não se dá pela pesquisa, que, como foi dito, é muito minuciosa, mas pelo gosto do autores de fazer vastas generalizações históricas e sua talvez excessiva esquematização. No geral, contudo, é uma das grandes reflexões sobre um aspecto importantíssimo da nossa história e da nossa formação. O livro é indispensável e um acompanhante fiel do volume anterior.